A equipa da Hera e a contribuição do GNC

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Escrevo este artigo a partir do aeroporto de Frankfurt, de regresso da última viagem de negócios à ESOC, onde ontem foi executada com êxito a primeira manobra no espaço profundo da missão Hera, orientando a nave para a sua trajetória interplanetária. Isto marca o final da chamada “Fase de entrada em funcionamento em órbita próxima da Terra”, mas talvez seja melhor começar pelo princípio. 

O conceito da missão Hera nasceu no início da década de 2000 e mudou várias vezes de nome ao longo da sua evolução, mas, finalmente, no Conselho de Ministros de 2019, foi aprovada esta desafiante missão e teve início a sua fase de execução. O principal objetivo da missão está relacionado com a defesa planetária e trata-se, concretamente, de investigar a técnica do impactador cinético. A missão Hera irá abordará o sistema binário de asteroides chamado Didymos e irá estudar o efeito do impacto da nave espacial DART (da NASA) na lua do sistema. O objetivo é compreender como defender a Terra, caso volte a ocorrer o mesmo que ocorreu aos dinossauros. De forma a alcançar o seu objetivo principal, a Hera precisava de um sistema de orientação, navegação e controlo (GNC) autónomo de última geração, que permitisse as suas operações de proximidade num contexto hostil, longe da Terra e com um campo gravitacional desconhecido e dificilmente previsível. 

4 anos foi o tempo que a indústria e a ESA tiveram para desenhar, desenvolver, construir e testar uma nova nave espacial, com tecnologias totalmente novas, especialmente relacionadas com o GNC. Na GMV foi criada uma equipa que desenvolveu novos padrões, novos processos e uma nova forma ágil de trabalhar... tudo isso ao mesmo tempo que se realizava o desenvolvimento normal do subsistema GNC. Já ouviu a expressão “construir um avião enquanto voa”? Apesar da falta de confiança do mundo exterior, a equipa da GMV conseguiu desenvolver e entregar um produto excelente, pelo que chegámos ao verão de 2024 orgulhosos do conseguido e convencidos que a aventura tinha terminado... mas era apenas o princípio!

De acordo com o contrato, a GMV devia dar suporte ao que se denomina LEOP e NECP (“fase de lançamento e órbita precoce” e “fase de arranque em órbita próxima da Terra”). A duração da LEOP é muito limitada (no caso da missão Hera era de apenas 3 dias) e o objetivo principal desta fase é ter o primeiro contacto com a nave espacial após o lançamento, comprovando que todas as suas unidades primárias funcionam corretamente. Durante esta fase, há vigilância 24 horas por dia a partir da Terra, uma vez que a equipa de Hera deve ser capaz de reagir rapidamente a qualquer possível anomalia. Terá notado que me referi à equipa da Hera, ao passo que antes mencionava apenas a equipa da GMV. Ainda não tenho totalmente claro quando ocorreu, e o mais provável é que tenha começado mesmo antes do verão de 2024, mas, de alguma forma, a ESA e a indústria criaram uma equipa unificada, quebrando todos os muros das interfaces padrão. Todos tínhamos o mesmo propósito: desafiar as regras das normas do “antigo espaço” (por exemplo, tempo de desenvolvimento, custo) de forma a tornar realidade o milagre da Hera. Este conceito ficou cada vez mais claro para mim durante as simulações LEOP. A partir de junho, a equipa Hera viajou várias vezes ao ESOC (Centro Europeu de Operações Espaciais) para simular o cenário LEOP e, naturalmente, a simulação foi muito realista, cheia de falhas que foram injetadas pelos responsáveis pelo SIM para treinar as nossas habilidades de deteção e resolução de problemas. Estávamos preparados para a LEOP e, ainda mais importante, criámos e consolidámos uma equipa na qual nos conhecíamos, conhecíamos as nossas capacidades e os nossos limites, e confiávamos na capacidade desta equipa unificada, a equipa Hera.

Finalmente, estávamos cada vez mais perto do dia 7 de outubro de 2024, o dia do lançamento, mas parece que uma força maior não queria que a missão Hera voasse. A nave espacial estava pronta em Cabo Canaveral (Florida), mas o lançador Falcon 9, após uma sequência incrivelmente longa de lançamentos com êxito, ficou em terra devido a um problema. Alguns dias antes da data nominal de lançamento, a FAA permitiu o lançamento da Hera e ainda me lembro das caras da equipa, com enormes sorrisos pintados como se fosse um sinal de que íamos finalmente mesmo fazê-lo. Mas os sorrisos não duraram muito, uma vez que um furacão chamado Milton estava a formar-se nas proximidades do porto espacial, e seria enorme! O furacão chegaria alguns dias depois, mas as condições meteorológicas já eram proibitivas, de modo que no dia anterior ao lançamento tínhamos 85% de possibilidades de que não ocorresse.

O dia 7 de outubro. Um amigo disse-me uma vez que as hipóteses de ganhar a lotaria são de 50%, uma vez que só há 2 resultados possíveis: ganhar ou perder. Eu disse isso à equipa na manhã do lançamento, porque 50% soava muito melhor do que 15%. Então aconteceu algo... a mesma força que parecia ter destinado a Hera a terra, mudou de opinião e, pouco a pouco, as possibilidades começaram a aumentar algumas horas antes da descolagem nominal. 15 converteu-se em 20, que se converteu em 30, então o “duvidoso” enfoque estático do meu amigo era aplicável, e sem sequer perceber, às 16:52 e 11 segundos... A Hera foi lançada. A mesma data que tinha sido definida vários meses antes, com 1 dia de avanço sobre o calendário previsto no contrato assinado em 2020. Quero também destacar o apoio das pessoas da GMV que viajaram para a Florida para testemunhar o lançamento, e de toda a equipa da GMV que foi essencial para o desenvolvimento do GNC, que assistiu ao vivo numa videoconferência desde Espanha, da Roménia e desde Portugal.

Começa a LEOP. Temos aquisição nominal de sinal e, para além de alguns alarmes falsos e alguns ajustes que é preciso realizar, uma a uma todas as unidades acordaram, esticaram os braços e começaram a comportar-se na perfeição! A nave permaneceu algumas horas naquele que se denomina Modo de sobrevivência GNC, com o conjunto mínimo de unidades GNC no loop. Posteriormente, utilizaram-se unidades mais avançadas e complexas, como o Star Tracker e as Momentum Control Wheels. Foi tudo nominal, e adiantámo-nos tanto ao calendário que também incluímos atividades adicionais, como disparar cada propulsor, um a um, comprovando o seu comportamento e também a reação da nave espacial à sua ação (os temidos modos flexíveis). A LEOP termina, não com uma explosão, mas com um queixume... com uma voz comovida que dizia “A LEOP terminou e foi um êxito”. Só tomei consciência algumas horas depois no hotel, e fico feliz, uma vez que teria sido bastante embaraçoso se todos vissem o quanto eu chorei. Uma das LEOP mais suaves de todos os tempos, sem que ocorresse nenhum problema importante... nem sequer nas simulações existiu nunca um cenário tão tranquilo. E esse é o momento em que comecei a ter as minhas dúvidas... Conhecem o Matrix? Mas não me importo. Se isto é um sonho, por favor, não me acordem.

Lembro-me do meu primeiro ano de universidade em Forlì, Bolonha. Consegui passar todos os exames com as notas mais altas, mas faltava um último... Já estava muito feliz, mas pensei que este poderia ser a chave final perfeita, a cereja no topo do bolo. Em julho de 2007 fiz esse exame e, na quinta-feira, dia 10 de outubro de 2024, a Hera fez história, demonstrando em voo a tecnologia de navegação autónoma baseada em visão mais avançada jamais desenvolvida numa missão da ESA. A LEOP tinha terminado, mas quando se cria uma equipa tão poderosa, é preciso esperar o inesperado. A partir de uma ideia da ESA, começámos a trabalhar na adaptação da tecnologia autónoma Hera GNC (que deveria ser utilizada no asteroide Didymos) para um cenário Terra-Lua. O único propósito era a sua validação, mas o problema é que a adaptação do cenário não era fácil, e tínhamos outras prioridades nos meses anteriores ao lançamento. Para não referir que a velocidade relativa de Hera relativamente à Terra era tal que este ensaio só poderia ter sido realizado 1 ou 2 dias depois da LEOP, onde esperávamos ter problemas muito maiores do que experimentar uma nova tecnologia. Apesar de tudo, essa noite aconteceu... e foi mágica. O ensaio devia ser planeado previamente durante uma passagem noturna de comunicações, sem ninguém na consola, mas naquela noite a Sala de Controlo Dedicada estava lotada de pessoas da indústria, controladores de naves espaciais, especialistas em dinâmica de voo. Quando finalmente vimos a primeira imagem da Terra desde a câmara Hera e tivemos a prova de que tinha sido utilizada com êxito pelos seus algoritmos autónomos... não se pode explicar a emoção com palavras, mas isso... foi a cereja no topo do bolo.

Agora voltamos ao princípio deste artigo, a etapa final destes primeiros dias em órbita, a manobra no espaço profundo. Com esta operação que conclui o NECP, a Hera, com os seus próprios propulsores, teve de disparar durante quase 2 horas para se colocar numa nova trajetória que a levará a Marte em março de 2025. Depois de aproveitar o seu impulso gravitacional, irá dirigir-se para Didymos, para aquilo que se espera seja uma fase muito emocionante de operações de aproximação aos asteroides.

Ontem, alguém me perguntou se, olhando para trás, posso dizer que valeu a pena... todo o trabalho, todo o compromisso pessoal, todo o sofrimento e todas as lutas. Posso finalmente sorrir e dizer que sim. Valeu a pena poder contribuir para esta incrível obra de engenharia que agora voa para o espaço profundo... valeu a pena ter a oportunidade de fazer parte da equipa Hera.

Andrea Pellacani and friends

Autor: Andrea Pellacani

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